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CABO VERDE, TERRA DE SODADE

por Food and Travel Portugal
CABO VERDE, TERRA DE SODADE

As dez ilhas de Cabo Verde variam entre si quer na topografia quer nas especialidades culinárias. Clarissa Hyman segue os seus sentidos através da mistura de influências africanas e portuguesas, de frutas exóticas e de marinadas picantes de peixe e de carne, cozinhadas lentamente como uma melodia complexa.

FOTOGRAFIAS: PETER CASSIDY

Quando a seleção nacional de futebol de Cabo Verde alcançou um sucesso inesperado, no Campeonato Africano das Nações, em 2013, o seu selecionador ficou tão emocionado que começou a cantar durante uma entrevista para a televisão. Mas não foi uma canção qualquer: a Biografia Dum Crioulo é uma carta de amor para a sua terra natal que se tornou um hino não oficial.

Na música, na cultura, no povo e na comida, este pequeno arquipélago, situado a 640km da costa do Senegal, reflete uma mistura de influências históricas e geográficas, destiladas numa só nação.

Este país é um emaranhado de elementos portugueses, africanos, brasileiros e até ingleses, mas as ilhas são um paradoxo: não há um cabo, não são verdes, nem africanas, nem portuguesas, são simplesmente algo indefinível.

Isoladas no oceano, que é tanto uma ponte de sonhos para um mundo mais rico quanto uma prisão, cada geração de habitantes conheceu a pobreza, o sofrimento e a separação. Porém, apesar do desgosto da partida e dos amores perdidos, há alegria nas melodias, nos ritmos firmes e nas batidas suaves que representam a cabo-verdianidade, a essência de Cabo Verde.

A música e a poesia das suas letras são baseadas na vida quotidiana. Elas seduzem-nos em cada esquina, por detrás de cada porta, ecoando desde o Atlântico e voando com os ventos que rodeiam os picos vulcânicos com o choro da sodade, a alma da morna. Esta é celebrada musicalmente de várias formas, definida pelas melodias langorosas e sensuais: a voz de veludo de Cesária Évora, a ‘diva descalça’, retrata perfeitamente a alma do país.

Tal como na música, este elemento caleidoscópico também está refletido na gastronomia das ilhas, que começou com os exploradores portugueses que chegaram no século XV, àquela que é agora a Cidade Velha, em Santiago, o primeiro Local Património Mundial da Unesco em Cabo Verde.

Os colonizadores rapidamente se aperceberam da sua importância estratégica e, em pouco tempo, as ilhas tornaram-se numa base relevante para as trocas comerciais entre a Europa, a Ásia e a América.

Mesmo hoje, em Santiago, ainda há comunidades descendentes de escravos que conseguiram fugir antes de serem vendidos. As paisagens destes dez pedaços de terra espalhados pelo oceano variam desde picos vulcânicos imponentes até praias incandescentes com pegadas de tartarugas, de falésias deslumbrantes até planícies vermelhas de argila.

Contudo, para além das salinas, são poucos os recursos naturais. Incansáveis, os colonizadores trouxeram para cá cabras que se alimentavam de matagal e forneciam carne, leite, manteiga e queijo. O queijo de cabra fresco com papaia cristalizada aparece sempre no final de cada refeição, coloquialmente chamado de ‘Romeu e Julieta’. Porquê?

Porque simplesmente combinam. Também se plantou milho e mandioca, do Brasil, assim como bananas, cajus e amendoins, batata-doce, cocos, malaguetas e muito mais.

Como Laurens van de Post escreveu uma vez: ‘Foram os portugueses, com a alma das suas hortas e a sua capacidade de resistência, que conduziram um continente inteiro em direção a um novo mundo de ingredientes.’

Cabo Verde ganhou a sua independência de Portugal de forma pacífica em 1975, e a sua transição de país de terceiro mundo para país em desenvolvimento, de acordo com a ONU, deve-se principalmente ao turismo.

Este país é ainda um trabalho em progresso, fustigado tanto pela economia mundial quanto pelos ventos do Atlântico, onde edifícios meio-construídos e montes de entulho espalhados se acumulam lado-a-lado com mansões modernas e arquitetonicamente deslumbrantes.

Um homem em particular possui um entendimento mais apurado acerca dos assuntos complexos que podem arruinar o desenvolvimento livre. Leão Lopes é um antigo ministro da cultura, académico e artista, que abriu o charmoso restaurante Babilónia, numa esquina tranquila de Santo Antão, como uma cooperativa sem fins lucrativos. Uma equipa de mulheres cabo-verdianas cozinha um menu incrível, baseado nos ingredientes produzidos nas suas quintas, como a carne de porco grelhada e o pato com milho salgado. É um modelo de turismo sustentável em pequena escala.

Cabo Verde produz uma variedade incrível de frutas exóticas: manga e goiaba, papaia, marmelo e fruta-do-conde, comida fresca ou em conserva. Também há algumas surpresas, como morangos sazonais ou sumos da ‘Árvore da Vida’ africana, a baobá.

Os vegetais, como seria de esperar, também crescem em abundância: cenoura, batata, batata-doce, abóbora, couve, feijão-verde, mandioca e inhame são alguns resultados da herança multicultural das ilhas.

O pão excelente também é uma herança portuguesa: na cidade de São Filipe, no Fogo, onde as ruas delimitadas por mansões coloniais se estendem pelas colinas até ao Atlântico, o cheiro do pão acabado de fazer vem do forno a lenha de uma pequena padaria.

Maria Augusta, tão venerável como a cidade onde vive, prepara pães amanteigados, pudins de queijo, areias e biscoitos de mel desde que se lembra. Depois de um dia passado na praia, não há nada melhor que isto.

Na cozinha cabo-verdiana tudo começa com cebola, tomate e alho. O resultado é semelhante, mas com múltiplas variações e alguns pratos únicos: cachupa com aveia, em São Vicente; feijão, ovos mexidos e coentros frescos, em Santo Antão; ou o maravilhoso cozido de peixe, engrossado com polpa e leite de coco e servido com feijão, arroz e ovos de codorniz, tradicionalmente servido na Quarta-Feira de Cinzas, em Santiago.

Os portugueses também levavam o seu café a sério e as plantações tiveram mais de 300 anos para se adaptar ao clima seco e árido das ilhas vulcânicas do Fogo e Santo Antão, produzindo uma mistura que é distintivamente aromática com o sabor a flores de hibisco e a suavidade de uma bela bossa nova.

A produção de vinho, na ilha do Fogo, é igualmente antiga. Algumas das vinhas mais extraordinárias do mundo, Chã Vinho do Fogo, estão situadas na cratera de Chã das Caldeiras, rodeadas de rochas enormes e dominadas pelo formidável e ativo Pico do Fogo.

Parece um milagre: vinhas sem estacas agarram-se à lava monocromática e às encostas de cinzas intercaladas com romãzeiras, macieiras e marmeleiros, que crescem corajosamente neste mundo de silêncio mágico.

A cana-de-açúcar chegou a Cabo Verde vinda de África e é o componente doce de vários pratos feitos com coco, banana, abóbora e papaia. É também a base do grogue, uma aguardente considerada um elixir natural. Nos desfiladeiros escondidos de Santo Antão, a cana é cultivada em terras íngremes e destilada em prensas de madeira movidas por bois.

É preciso prática (e dedicação) para identificar as variações, embora se saiba que as colheitas sem controlo e as das grandes marcas, que contêm aditivos, devem ser sempre evitadas. Procure a marca artesanal Mestres das Ribeiras. O ponche, uma bebida que junta mel, gengibre e fruta ao grogue, também é perigosamente fácil de beber.

Existe uma expressão crioula que diz que duas pessoas inseparáveis são como o milho e os feijões; sempre plantados lado-a-lado. O milho, prático e omnipresente, é a respiração e o corpo da agricultura de Cabo Verde, mas são ambos ingredientes essenciais da cachupa, um estufado que contém tudo aquilo que o cozinheiro quiser; o que sobrar é frito e servido com ovos ao pequeno-almoço do dia seguinte. É um prato que simboliza o lar para a extensa e orgulhosa diáspora cabo-verdiana no mundo.

O cuscuz de milho é cozido nuns moldes em forma de cone, depois é ensopado com xarope de cana-de-açúcar. Os bolos e pães de milho são feitos, tradicionalmente, com farinha e com milho.

Os habitantes locais insistem que, comparativamente com os prontos-a-comer importados, é mais firme e tem um sabor melhor e mais subtil, mas os últimos são mais fáceis de encontrar nos minimercados.

Os mercados de peixe são uma alegria quotidiana, o pescado vem de pequenos barcos que ancoram na costa. É um cenário ruidoso, dominado pelos gritos das mulheres dos pescadores que vendem atum, olho-de-boi, cavalas, garoupas, polvo e moreias.

Num dos cantos do mercado do Mindelo, uma cozinha pop-up serve uma multidão insaciável que pede cachupa, sopa de galinha servida em velhos recipientes de margarina, caldo de peixe picante, pratos de arroz e feijão e grandes chávenas de café. Traga a sua própria colher.

Os estufados de peixe são feitos de formas diferentes por todas as ilhas, variando nos peixes e nos vegetais utilizados, mas todos levam uns raminhos de coentros antes de serem servidos. Sorridente e graciosa, Lily Freitas, a ‘Rainha Mãe do Carnaval’ de São Vicente, faz o seu estufado com cabeças de peixe para dar profundidade ao sabor, antes de servir à sua equipa um enorme e suculento bolo picante com a forma do continente africano.

Uma nação recente e brilhante, Cabo Verde exibe a sua alma jovem e ideias criativas. Dois chefs, em particular, que regressaram às ilhas, trouxeram um toque sofisticado aos pratos tradicionais. No Oásis Praiamar, na ilha da Praia, Amílcar Lopes prepara um menu moderno e inteligente, e a sua versão da cachupa é um êxito: conseguiu um lugar no Livro de Recordes Guinness com uma cachupa que pesava mais de seis toneladas e que alimentou 30.000 pessoas.

Outro homem talentoso, Amílcar Tavares, do Dokas, no Mindelo, também é um forte defensor da utilização de ingredientes locais em pratos como o seu carpaccio de lagosta.

Embora a cavala esteja disponível durante todo o ano, é mais abundante no início do verão, época em que decorre o Kavala Fresk, no Mindelo. Em toda a parte há peixe a crepitar na grelha e os restaurantes competem entre si com novas receitas. Porém, para muitos, o mestre continua a ser o Bar Boaventura ‘Domingas’, onde a cavala é servida numa simples marinada de azeite, vinagre, alho e salsa. Neste festival, a festa dura até de manhã.

As bandas de samba, os desfiles e as quantidades escandalosas de grogue adicionam espírito em todos os sentidos. A tristeza que a vida traz fica para amanhã. Hoje celebramos. Este é o estilo de vida cabo-verdiano.

Clarissa Hyman e Peter Cassidy viajaram para Cabo Verde com a cortesia do Turismo de Cabo Verde. turismo.cv

Artigo publicado na edição de maio/junho 2019.

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