Um canto escondido no norte de Espanha, Cabrales preserva o seu estilo de vida antigo, assim como a sua gastronomia. Queijos fantásticos, estufados de feijão e carnes de caça entraram no menu de Michael Raffael.
TEXTO: MICHAEL RAFFAEL | FOTOGRAFIAS: SARAH COGHILL
As grutas de Cabrales são arrepiantes. O pavimento é húmido e escorregadio. As teias de aranha decoram os tetos há anos. Mas o mais assustador de tudo é o aroma forte dos milhares de queijos, que ganham bolor lentamente, passando de brancos a azuis. Os produtores de queijo vêm cá limpá-los, esfregá-los e cheirá-los frequentemente, como se a sua vida dependesse disso.
Cabrales é um canto perdido no norte de Espanha, mas não é uma terra qualquer. Ligeiramente afastada do Oceano Atlântico e esticando-se pelos Picos da Europa, é um aglomerado de estradas íngremes, trilhos, riachos e canais que serpenteiam entre os desfiladeiros de calcário. As vacas pálidas Carreña arrastam-se ao longo das faixas duplas, desafiando os condutores.
Os queijos são produzidos e fumados neste local há séculos Aguardente de orujo, feita com as cascas das uvas Mel local e cuajada
Nas manchetes da imprensa local pode ler-se: ‘A presença de lobos em Cabrales está a atrasar o desenvolvimento turístico’, e isso diz tudo. Com mais do dobro do tamanho de Barcelona e com uma população de menos de 2.500 habitantes, Cabrales é um dos 78 municípios que constituem o Principado das Astúrias. Possui um dialeto local, uma bebida preferida (sidra), um queijo com o seu nome, mundialmente famoso, e outro produzido na mesma área que com ele rivaliza. É tentador descrever esta paisagem como uma réplica dos planaltos albinos, rodeada por montanhas com mais de 2.600m e prolongando-se pelas planícies em direção à costa. No verão, Cabrales é bucólica, o paraíso dos viajantes mais aventureiros; no inverno, é uma localidade feroz onde a sobrevivência pode ser complicada.
Ana Rosa Bada faz o seu queijo em Poo, uma das nove parròquias de Cabrales. Originalmente, o leite era coalhado com um conjunto de enzimas (coalho) presentes no estômago das crianças. Agora já não. Pode ser uma mistura de leite de vaca, ovelha ou cabra – o que quer que chegue à sua leitaria.
Ana Rosas e o seu Cabrales Rodas de Cabrales deixadas a envelhecer, para ganharem o sabor forte e as veias azuis escuras O resultado final
‘Usamos apenas leite não pasteurizado e não adicionamos nenhum Penicillium roqueforti (fungo) para o tornar azul,’ explica. ‘Não precisamos porque o queijo tem uma textura aberta (com vários buracos) e as grutas fazem o resto.’ O tempo que ficam na gruta pode variar entre dois a quatro meses. Nessa altura, os queijos terão manchas azuis escuras desde a casca até ao núcleo. A sua textura não é húmida. É mais duro e farinhento do que cremoso, não é amanteigado. O paladar, sempre muito forte, pode variar entre o agreste e o bolorento. Mas não há dois iguais; o seu sabor eletrifica a língua imediatamente com uma variedade de sensações – mirtilos, groselhas, ervas, palha, chocolate agridoce, cabedal, madeira e, sim, carne.
Poo é um aglomerado de casas de pedra com janelas de madeira, varandas ao lado de hórreos, depósitos de grãos construídos em cima de estacas. Em frente à leitaria de Ana Rosas está a Casa Aida, um café e mercearia. Peça uma tábua de embutidos ao barman e ele preparará um prato de enchidos fatiados na hora, no balcão. Uma tábua com presunto serrano, lomo (lombo de porco curado), salame, chouriço e cecina custa cerca de 6€. A salsicha é de veado, o chouriço é de javali e a cecina – bem, é só carne seca. Pode ser de cabra montesa ou de íbex espanhol, ambos de caça.
Os hórreos mantêm a colheita seca Pedaços de queijo Gamonéu
Os pais de Ana Rosas (a sua família trabalha na agricultura há seis gerações) costumavam levar o gado para as montanhas no verão, ordenhavam as vacas, ovelhas e cabras e faziam queijo. ‘O casebre onde eles viviam é
agora uma ruína,’ diz ela. ‘Ainda é nosso, mas não podemos transformá-lo numa casa de férias.’ Apenas os pastores, que preferem viver ali com os seus animais, é que podem ficar.
Cándido Asprón é um deles. Decidiu passar os seus verões ali. Tem 11 irmãos, mas ele foi o único que escolheu ter uma vida de isolamento. Educado para ser agricultor, emigrou para a Venezuela para trabalhar como construtor civil. Com saudades de casa, voltou para viver numa casa de pedra em Belbín, a uma hora a pé dos lagos de Covadonga, onde a estrada de asfalto e o transporte de quatro rodas terminam. Em dias de céu limpo, os cumes das montanhas ainda com neve e os pastos repletos de flores selvagens, formam um cenário idílico. Quando as nuvens fecham e o nevoeiro se torna mais denso, é quase ameaçador. O único som vem do batuque e do ding dos sinos dessincronizados em volta do gado invisível.

Cándido ordenha as suas cabras e seis vacas, para fazer o outro queijo local, Gamonéu, que, oficialmente, vem de Onís. Pelo tamanho e forma, podia passar por Cabrales. Os troncos dos carvalhos no exterior da sua leitaria, dão uma pista para aquilo que os diferencia. Este é ligeiramente fumado. Não maturado, é mais terroso e o sabor a leite limpo permanece no palato. Se envelhecer, fica mais duro e apurado. A textura é mais firme do que a do Cabrales.
Num curral de pedra, ligeiramente maior que os seus aposentos, Cándido cria dois porcos. Eles alimentam-se de soro, um subproduto dos seus laticínios. Um tubo cheio de chouriço e toucinho dita o seu destino. Cándido não se importa muito com os vegetais. No seu jardim, não há sinal de fabes, as famosas favas brancas das Astúrias.
Barrando mel sobre um torto de maíz Uma vida solitária rodeada pelos animais e as montanhas
Há ainda outro trabalhador nesta zona. A Aula de la Miel, de Jesús Noriega, na vila vizinha, Alles, em Peñamellera Alta, é parte academia de apicultura, parte museu, parte centro de provas de mel – onde se pode experimentar o produto das 600 colmeias ali existentes. A mulher de Jesús, Carolina, frita tortos de maíz, pastéis de milho, para mergulhar em mel de urze, castanha e lima ou chocolate. Até combinam com o pâté de mel e Cabrales. Houve um ano que Jesús levou as colmeias para a costa, no final do verão e um terço foram destruídas. Depois, levou-as a passar o inverno nas montanhas e todas sobreviveram. As abelhas, diz ele, têm o seu próprio sistema de aquecimento central: ‘Dentro das colmeias estão 40ºC, suficientemente quente para derreter a neve no exterior. As abelhas trabalhadoras fazem as suas asas vibrar para gerar calor.’ Ele vê isto como uma lição em quão frágil, porém resiliente, é o habitat natural.
O Gamonéu feito nas quintas dos vales de Onís é bom, mas não tanto como aquele produzido por Cándido. Ele sorri enquanto um amigo lhe traz um jornal e uma baguete fresca. A vida de um pastor da montanha tem as suas regalias – e não é só o queijo produzido aqui nas montanhas e nas grutas, mas também as pessoas dedicadas aos seus ofícios.

Onde comer
Casa Marcial O menu tradicional de Esther e Nacho Manzano oferece uma proposta qualidade-preço única para a sua experiência gastronómica de duas estrelas Michelin. Inclui a receita de arroz con leche (arroz doce) da sua mãe, croquetes de presunto, uma pequena dose de fabada e frango com arroz. 47€. La Salgar, s/n, Parres, Arriondas, 00 34 985 84 09 91
Restaurante Los Arcos Um restaurante antigo com sidra e queijos excelentes e alguns pratos tradicionais a sério. Cerca de 39€ (com cidra incluída). 3 Plaza del Ayuntamiento, Cangas de Onís, 00 34 985 849 277
Onde ficar
La Cepada Um hotel pequeno e moderno com quartos espaçosos, construído numa colina com vista para Cangas de Onís. Duplos a partir de 50€, com pequeno-almoço incluído. Avenida Contranquil, s/n. Cangas de Onís, 00 34 985 84 94 45
La Ablaneda Com apenas dez quartos, esta é mais uma guesthouse do que um hotel, mas é conveniente, imaculada e perto do parque nacional. Funcionamento do hotel entre 1 de junho e 30 de setembro. Duplos a partir de 100€. Covadonga, Cangas de Onís, 00 34 985 940 245
Onde fazer compras
La Barata Uma loja ideal para comprar queijo e outros produtos típicos das Astúrias. Avda. de Covadonga 15, Cangas de Onís, 00 34 985 849 313
A não perder
Passe uma noite em Oviedo Woody Allen filmou um excerto do Vicky Cristina Barcelona nesta cidade e disse que era a sua favorita. A capital das Astúrias vale a pena ser visitada no seu caminho para Cabrales. Durma no elegante Princesa Munia Hotel & Spa. Duplos a partir dos 65€. Calle Fruela 6, 0034 984 28 55 80,
fruelahoteles.com. Experimente o Ca’Suso, uma bodega moderna com comida típica das Astúrias. 10 Marqués de Gastañaga, 0034 985 228 232.
O artigo está incompleto, para ler a versão completa faça já a sua assinatura Food and Travel Portugal e peça a edição de dezembro 2018, gratuitamente, com o envio da primeira revista.