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VIAJANTE GOURMET: DESCOBRIR SIENA, ITÁLIA

por Food and Travel Portugal
VIAJANTE GOURMET: DESCOBRIR SIENA, ITÁLIA

Durante séculos, Siena era muito comparada a Florença, a sua vizinha Toscana, mas, em muitos aspetos, desde o gado suíno da raça Cinta Senese até ao panforte, passando pela arquitetura e até pela cerveja artesanal, estas duas cidades têm muito mais diferenças do que se imagina. Alex Mead mergulha fundo nesta cultura fascinante.

FOTOGRAFIAS: DANIELE COLUCCIELLO

Dois cães ladram em torno do trator à medida que Mario Machetti conduz por um caminho poeirento, rodeado de vinhas. ‘Este é o Bart e aquela é a Lola,’ explica, saindo do veículo para nos apresentar aos seus seguidores de quatro patas. ‘Chamei-a assim, em homenagem à minha primeira namorada.’

A quinta de Machetti representa tudo o que há de bom em Siena, a província mais central da Toscana – e tudo começa pela sua vista incrível. A sua casa é uma paisagem de colinas que se sobrepõem, criando um campo que parece dobrar-se infinitamente sobre si mesmo. Aqui e ali, o verde é interrompido por manchas terracota – o telhado de uma quinta ou de uma igreja, talvez uma pequena vila ou aldeia.

A vista fantástica do Ristorante Croce di Bibbiano.

Depois, o nosso olhar alcança a cidade de Siena, à distância – um conjunto de castanhos, amarelos e vermelhos de vários tons que surgem acima do tapete verdejante. Mesmo do sítio onde estamos, a uns bons 30 minutos de carro do centro, a torre de mármore cinzento, com 102 metros de altura – Torre del Mangia – pode ver-se claramente, erguendo-se elegante entre os aglomerados de telhados e azulejos.

À medida que vai falando connosco, Machetti recolhe morangos plantados numa banheira transformada em canteiro. O seu pequeno pedaço de terreno pode parecer ligeiramente decrépito dada a forma mais singular e rústica, mas ele aproveita cada centímetro para semear e cultivar produtos que se comem ou bebem. Galinhas rechonchudas passam por nós enquanto nos dirigimos ao que um chef chamaria de ‘cozinha no jardim’. Alho, tomates, vegetais, leguminosas – é difícil ver onde cada verdura acaba e a seguinte começa. ‘Aqui temos tudo o que é mais importante para a vida,’ conta. ‘Vinhos, azeitonas, carne e legumes – os quatro pilares da vida’.

Ao lado da horta está o olival e entre cada árvore vemos algum material de agricultura ligeiramente rudimentar, daqueles utensílios que encontramos nos museus. ‘O meu pai costumava usar vacas para puxar os arados’, explica Machetti apontando para as relíquias. Enquanto avançamos pelo trilho, passamos por um aglomerado de uvas sangiovese (tem dois hectares de vinhas no seu terreno com 24). Vai podando até ter uma mão cheia de ervas que usa para alimentar o próximo amigo ao qual me apresenta. ‘São lindas, não são?’ pergunta-me orgulhoso, referindo-se às vacas da raça Chianina. Há 20 vacas, 20 vitelos e um boi, Warrior. ‘Ele só está connosco há um ano, tivemos de vender o outro porque estava a ficar muito velho. Na minha opinião, são eles que dão a carne mais saborosa’, confessa. ‘O sabor é tão forte porque eles são magros, não têm muita gordura, por isso o gosto é mais apurado – o entrecosto é a minha parte favorita’.

Caminhando agora por entre as filas de vinhas, com a Lola ao meu lado e a quinta no topo da colina, Machetti apresenta-nos a Gino. ‘Ele está comigo há muito tempo. Só aqui tenho duas pessoas a trabalhar para mim, Gino e Antonella – ela faz tudo o que toca a cozinhados, exceto churrascos. Isso já faz parte do meu domínio’. O seu ‘restaurante’ no local funciona um pouco dependente da sua vontade. Como ele e Antonella estão sempre presentes, bem como a sua mulher Simonetta, não há um horário fixo. Podemos simplesmente ligar e, por 50€ por pessoa, Mario prepara um banquete, no sentido mais literal da palavra. Quando nos sentámos para almoçar, Antonella serviu um copo de vinho tinto caseiro de um jarro gigante. E o copo de Machetti? Bem, era mais parecido com uma caneca. ‘O meu pai bebia dois litros por dia’, ri-se e brinda.

A magnífica cidade de Siena, banhada pelo sol

O bom vinho está em toda a parte, estamos no coração da região do chianti. Cada dono de vinhas deve ter o seu próprio vinho – e o de Machetti é uma forma de auto-expressão sua: repleto de sabor, com notas frutadas tão fortes que lembram uma taça cheia de cerejas e framboesas espremidas num puré.

De várias formas, os rebentos desta terra maravilhosa preenchem a mesa, desde o vinho até às saladas coloridas, bruschetta feita com o seu próprio azeite e tomate cortado grosseiramente, e um carpaccio que é tão doce quanto substancial. O cheiro do grelhador a carvão invade a sala mesmo antes de Machetti colocar uma bistecca alla fiorentina com 4cm de grossura, sobre a chama. ‘As vacas Chianina foram criadas para trabalhar nos campos e depois os agricultores aproveitavam a sua carne para preparar pratos fantásticos’, explica-nos enquanto corta o bife perfeitamente grelhado, fumado e caramelizado em pedaços. É mais delicado do que nós achávamos, de facto é uma carne magra e saborosa, mas não demasiado forte. Dado que as vacas já não puxam os arados pelo campo, as próximas gerações tenderão a ter maiores quantidades de gordura.

A história das Chianinas de Machetti também é familiar para Alessandro Chiesa, um chef natural de Siena, que regressou à sua terra recentemente vindo das grandes cidades italianas, para cozinhar alguns dos seus pratos preferidos no restaurante La Voliera, a 20 minutos de carro para oeste. ‘As vacas Chianina dão carne de excelente qualidade, se o fogo estiver bem feito, só precisa de um pouco de sal e de azeite de alecrim,’ conta.

Na esplanada do restaurante, o chef fala-nos da comida local. O prato à nossa frente é extremamente delicado, de uma forma que os inspetores Michelin adoram, com elementos diferentes que combinam formando uma instalação artística comestível, colorida e com várias texturas. Entre os ângulos e as curvas, as folhas, pétalas e purés, há batatas roxas, espargos brancos, flores de curgete, cenouras, tomates, pimentos e até verbena. É bonito, mas verdadeiramente enganoso no que toca à comida toscana tradicional.

Até o chef que serve esta cornucópia de vegetais sazonais sabe que a cozinha habitual local é conhecida por pratos muito mais robustos que estes. Por exemplo, a ribollita (sopa de legumes com pão) que se segue, é tão composta e saborosa que só agora percebi o que a minha mãe dizia sobre comer vegetais – senti que acrescentei um ano à minha vida ao comer esta tigela cheia. ‘Esta sopa vai mudando de acordo com a estação do ano e a zona da Toscana onde estamos,’ explica Chiesa. ‘É cozinhada com tudo o que encontramos nesta região em cada época do ano’.

A casa própria de Chiesa fica a apenas alguns quilómetros do La Voliera, baseada num hotel situado no que outrora foi uma aldeia medieval. ‘Cada uma das vilas tem as suas receitas’, continua. ‘Por exemplo, há o peposo, um estufado que começou numa aldeia onde todos trabalhavam com cerâmica – usando os fornos de argila para cozinhar este prato todos os dias.

Juntavam carne de vaca, cebola, vinho tinto e pimenta preta numa panela e colocavam- na no forno antes de continuarem a trabalhar. Ficava pronto quando eles terminavam o trabalho.’ ‘Foi assim que apareceu o fagioli el fiasco (um prato de feijocas cozinhadas num frasco)’, explica Chiesa. ‘Os agricultores costumavam colocar os feijões dentro de uma garrafa de chianti juntamente com água, muito alho e sálvia, depois fechavam-na, e aqueciam sobre o carvão em brasa. Quando voltavam para casa ao final do dia, os feijões estavam prontos a comer.’ Ainda nos dias de hoje, os mesmos pratos prevalecem na região, embora alguns deles não estejam tão presentes como a pici, a famosa massa grossa enrolada à mão, que nos servem a seguir.

A Torre Mangia iluminada pelo sol

Estas massas caseiras parecem cordas, mais grossas que o spaghetti, mas com uma consistência perfeita. São servidas com um ragù de javali selvagem cozinhado em vinho tinto com alecrim, zimbro e sálvia, adicionando uma riqueza que combina perfeitamente com a massa al dente. ‘Nós comemos produtos locais’, explica, referindo-se aos seus fornecedores. ‘Somos uma região muito rural; a nossa qualidade é muito maior do que em qualquer outro lado’.

De forma a comprovar a afirmação, o seu último prato é uma porchetta cozinhada lentamente durante oito horas em jus de vitela – uma carne assada extremamente saborosa e delicada com um toque fumado e gorduroso divinal. Andrea Bezzini conhece o seu gado suíno, talvez até melhor que o próprio Chiesa. A sua família tem vindo a cuidar dos Cinta Senese, a raça nativa de Siena, desde 1800, sempre na mesma quinta, em Simignano, uma pequena aldeia a oeste da cidade. Outrora lar de 750 pessoas, hoje conta apenas com 35 habitantes.

Depois de breves apresentações, leva-nos a conhecer a família. Como uma equipa de futebol rebelde, vestidos com um equipamento preto com argolas cor-de-rosa, os Cinta Senese preenchem as colinas, caminhando euforicamente na direção de Bezzini. Os animais podem correr livremente ao longo dos 420 hectares de terreno, recebendo a maior parte da sua dieta anual de produtos que vão caindo das árvores e arbustos que ali existem. Mas ao verem o dono já sabem que ele vai mostrar-lhes o alimento favorito.

Cerca de 100 hectares estão cobertos de castanheiros. Armado com uma vara de madeira para o espetáculo ocasional, Bezzini começa a guiar os seus suínos ao longo de um campo cheio de sálvia selvagem e magnólias – o ar espalha um aroma de hortelã, o chão está cheio de castanhas caídas, as favoritas dos porcos. ‘Eles comem de acordo com as estações,’ conta-nos. ‘Em setembro, comem maçãs e pêssegos, a partir de outubro, castanhas e bolotas. Estas duram até fevereiro: a queda das folhas tapa estas frutas no chão, mantendo-as frescas, os porcos só precisam de procurá-las e comê-las.’

Uma tábua de prosciutto di Cina Senese é servida num dos bares durante a happy hour na cidade de Siena. Pare para beber
um aperitivo depois do trabalho (ou um dia inteiro de passeios), e sentir-se-á envolvido num turbilhão de pratos típicos. E não estamos só a falar das carnes e das tapenades, mas também de queijos sensacionais
. Exibindo um Pecorino para cada ocasião – envelhecido numa cave ou numa adega, salgado, doce, cremoso, ácido, azedo –, a banca dos queijos é o local ideal para conversar, saber dos mexericos mais recentes e encher um saco com os produtos mais variados.

Na altura da nossa visita, as notícias mais discutidas entre os aldeãos estavam todas relacionadas com o Palio di Siena – a corrida de cavalos mais famosa da cidade. Esta vila, com pouco mais de 50 mil pessoas, duas vezes por ano divide-se e volta a unir-se. Dividida em 17 bairros, ou contrada, a praça medieval de Siena, Piazza del Campo, é coberta de areia e transformada numa pista de corrida.

Prato de pato, no Particolare di Siena

Toda a cidade se junta para duas corridas – uma em julho e outra em agosto – dez cavalos, cada um representando um contrada, dão três voltas ao recinto. ‘Esta corrida é tudo para nós’, conta-nos o proprietário de um bar ao servir-me um negroni. O teu contrada é tudo para ti, é a tua vida, e o Palio é o que nos junta a todos – odiamos os nossos vizinhos durante aqueles dias, mas depois tudo passa e ficamos amigos outra vez.’

O Palio é um evento único de Siena e, para uma cidade cujos habitantes conheceram séculos de guerras, lutando contra a sua rival, Florença, são diferenças como esta que deixam os habitantes orgulhosos. Vivendo durante anos na sombra de Florença, Siena sempre se impôs. Manteve a excelência nas batalhas (pergunte-lhes acerca de Montaperti), na arquitetura – um olhar sobre o Duomo, um edifício deslumbrante e único, na sua gastronomia e no vinho.

Atualmente, está à frente da cidade vizinha no que toca à cerveja. Ironicamente, com o nome do florentino Dante. La Diana é a única fábrica de cerveja de Siena e as personagens do Inferno de Dante dão o nome aos vários produtos. ‘Dante escreveu sobre um rio mítico que passaria sob Siena e que nós nunca encontraríamos,’ explica o mestre cervejeiro Francesco Mazzuoli. ‘Daí pareceu-nos um ótimo nome para usarmos.’ Um desafio quase tão grande quanto encontrar uma fonte de água inexistente, é vender cerveja aos italianos. ‘Não temos a cultura da cerveja em Itália,’ confessa. ‘Estamos na terra do vinho. Se as pessoas pedirem uma cerveja, pode ser qualquer uma. Ninguém pediria apenas vinho, seria sempre vinho tinto, branco ou rosé, de castas diferentes, de regiões diferentes.’

A versão da La Diana da Belgian, da cerveja de trigo, da IPA e da APA ganham vida com o uso de ingredientes locais. Têm vindo a utilizar lúpulos selvagens que crescem dentro das muralhas da cidade, e o ingrediente determinante, o mel, também é único. ‘É doce, mas não demasiado doce,’ explica Mazzuoli, ‘com um sabor a eucalipto, mas não demasiado forte. É suave… Como uma flor, mas com personalidade.’

Fachada do restaurante La Bottega

Até trabalharam com o famoso padeiro Lorenzo Rossi para criar uma cerveja – Piccarda – que usa a sua receita tradicional de
panforte para criar a ale ideal para as épocas festivas. ‘Isto é Siena numa garrafa,’ conta-nos Rossi, quando visitamos a sua pastelaria no centro da cidade, onde tem vindo a fabricar os melhores bolos, biscoitos, pastéis e doces desde 1952. Rossi, que deu seguimento ao negócio depois do seu pai, há 20 anos, mostra-nos ricciarelli (biscoitos parecidos com macaroons), cantucci (biscoitos toscanos) e as frutas cristalizadas; fala-nos dos rácios de amêndoas e açúcar e dos ingredientes que utiliza.

Mas será sempre o panforte – um bolo saboroso, com frutas cristalizadas – o mais conhecido. ‘O panforte leva várias especiarias e ervas aromáticas – é feito para nos fazer sentir melhor. É um remédio comestível,’ conta-nos. ‘É a alquimia dos ingredientes que o torna especial.’ Em alguns casos, bastante especial até. ‘Tivemos um cliente particular, um senhor na casa dos oitenta, que veio cá e comprou um panforte, e depois voltou para comprar mais, semana após semana. Quando lhe perguntámos o que tinha o bolo que o fazia gostar tanto, a sua mulher começou a corar – parece que tinha um efeito afrodisíaco… E isto resume a essência de Siena’, continua Lorenzo. ‘Somos muito orgulhosos, muito calorosos e tudo aqui gira em torno da paixão’.

Artigo publicado na edição de dezembro 2019 /janeiro 2020.

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